Era sexta-feira santa. O sol de fim de tarde já declinava, ao tempo em que as aves agourentas se amontoavam na copa das árvores ao redor da cena macabra. Elas estavam famintas e curiosas, e vez ou outra uma se balouçava na galha fina para bicar a vizinha incômoda. Abaixo delas, a cena macabra. Ele não queria continuar. Estava cansado, tomado pelos nervos e extremamente assustado. De dentro da gaiola notava os olhares curiosos dos que certamente estavam ali para observar a maldade que fariam com ele. Fustigado por varas pontudas e contundentes, era obrigado a pisar na arena fúnebre. Não queria, não queria. Seus algozes, notando sua resistência natural - e também sua força - laçaram diversas cordas em seu pescoço, tracionaram seu volumoso corpo e depois as prenderam tal como uma matriz por entre as toras de madeira velha fincadas no chão, que lembravam morte, solidão e decadência. Os cachorros latiam, ferozes, e desferiam dolorosas mordidas em sua carne trêmula e quente. O fim se aproximava. Os curiosos riam, filmavam e se esbaldavam ludicamente como se fossem espectadores de uma luta bárbara no coliseu romano. Ninguém acorria em sua causa, nem mesmo as meninas de olhares assustados. Talvez elas também, por dentro, desejassem sua morte. Mais tarde seria pendurado no meio das estacas e ali teria o couro arrancado e o ventre aberto para a retirada de suas vísceras. O tempo se arrastava, infinito, ante a gritaria humana ao seu redor. Já exaurido e perdendo os sentidos por causa do enforcamento múltiplo, notou a aproximação do carrasco andrajoso com uma marreta imensa na mão. Ele não tinha pena de sua situação e de seu desespero, tampouco se alegrava. Aquela tarefa lhe parecia algo trivial e necessário, como um meio de subsistência. "É agora! É agora!" gritou a plateia. O algoz, então, desferiu um golpe letal em seu cachaço, derrubando-o imediatamente sobre a terra escura. Ouviram-se gritos de comemoração ao redor do corpo tombado que se debatia em suas últimas contrações involuntárias. Os olhos reviraram e ele deu o suspiro derradeiro, longo e penoso, como um balão que desenche. O crepúsculo sobre o gólgota emudeceu a turba do linchamento, e nesse momento uma faca amolada perfurou uma grossa artéria de seu pescoço, donde se viu o sangue jorrar e ser aparado por um balde. O boi agora era só um amontoado de carne, couro e vísceras que saciariam a fome de uma pequena população regional do semi-árido baiano, que rezava a Jesus naquele dia por ocasião da Páscoa.
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A caverna
A escuridão da ignorância não resiste à luz da razão
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