João, quando se sentia só, abraçava fortemente o corpo de seu violão de cordas de nylon, um Di Giorgio modelo Tarrega de 1969, parceiro de tantos anos. Violão este, vale ressaltar, imperfeito - sim, um dos músicos mais geniais da história da música brasileira, o pai da Bossa Nova, usava um instrumento, digamos assim, vagabundo - nas palavras do professor Aderbal Duarte, "a quarta corda, se você tocasse um pouco mais forte, estourava, e entre a sexta e a quarta, tinha uma descompensação... mas ele sabia de tudo isso, e equalizava o violão ao seu modo, domando as notas de cada acorde de forma magistral..."
João, quando queria falar com um amigo, simplesmente ligava. Nelson, certa vez, em conversa com ele, revelara ao grande amigo que estava passando por um momento difícil, de separação. Rupturas são sempre dolorosas, não é mesmo? João então lhe disse: "estou indo aí". Sem nem ter tempo de tomar um banho ou trocar de roupa para receber o amigo, Nelson foi surpreendido por João, que o levou pra passear por Copacabana, em seu Monza, e depois de levar o amigo para casa, passou horas tocando violão para ele. Entre as canções, Chega de Saudade, Da Cor do Pecado, Wave, Desafinado, Caminhos Cruzados... "Da janela via-se o corcovado, o redentor, que lindo..."
Era avesso a entrevistas. No final da década de 1960, em turnê pelos EUA, fora instigado por uma repórter brasileira a falar sobre seu trabalho musical em Nova York, ao que o criador da Bossa Nova respondeu: “fale você”. Se mostrava bastante tímido diante de repórteres, mas no palco revelava grande aptidão e familiaridade com as multidões; sem afetação ou vaidade, se limitava a executar suas peças extensamente elaboradas para o violão e se inebriava com os aplausos do público com um respeitoso silêncio.
João cantava em sussurros, de um jeito quase coloquial e semelhante à fala, e as notas de suas músicas eram tão variadas e numerosas quanto as sílabas dos versos. Muito da revolução que trouxe se baseia na divisão rítmica da melodia cantada, dando valor à sonoridade de cada palavra. A batida de seu violão era como que uma síntese suave de uma escola de samba. Tudo se encaixava perfeitamente – voz e instrumento – como uma coisa só, faces de uma moeda, metades de uma laranja.
O professor Aderbal lembra que, antes de João, o violão era um adereço, apenas um acessório num grupo de outros instrumentos de corda, à luz do samba; depois de João, o violão ganhou independência e status nos palcos.
Há muitas anedotas sobre João, que uma crônica não seria capaz de contar todas, mas há aquelas registradas por vídeo. Na Bahia, em 1976, num show histórico realizado na Concha Acústica do TCA, reagira às vaias direcionadas ao seu tão admirado amigo e letrista Vinicius de Moraes, quando o mesmo cedeu seu lugar no palco.
“Tô cansado, sem dormir, acabei de chegar de uma longa viagem". As vaias persisitiam. "Não, não. Não faz isso que eu vou embora, hein?" Era uma ameaça real. Ele já tinha abandonado o palco em episódios anteriores de plateias indóceis. "Respeito e admiração ao poeta, aqui é a Bahia, a terra primeira”
Com uma audição absoluta, viu que a nota dissonante aos aplausos partia de um único emissor.
“Quem é este besta? Deve ser algum imbecil, sem força nenhuma, fazendo uuu. Ah, tô com a calça rasgada”
Logo em seguida entoando: “Eu vim da Bahia cantar, eu vim da Bahia contar, tanta coisa bonita que tem...”
O ouvido absoluto de João também propiciava momentos um tanto quanto cômicos, por assim dizer. Músico exigente, se o som não estivesse 100% ele não escondia o desagrado, e falava no microfone mesmo. Isso talvez tenha sido um dos motivos pelos quais ganhou fama de chato, injustamente: pra música sair na caixa na forma para a qual foi preparada, tudo deveria estar nos conformes. E às vezes os técnicos demoravam de entender todo o processo, seja porque João não detalhava tudo, seja por limitação do equipamento. Um caso interessante ocorreu em 1999, em São Paulo, num dueto que fez com Caetano Veloso. Fez uma passagem no meio da apresentação:
“Mas acontece que eu sou baiano... mas acontece que eu sou baiano... tem um eco.” Ao fim de uma olhadela de reprovação, concluiu, magistralmente: “que é isso?!...”
Uma parte da plateia, composta – como disse Caetano mais tarde – por imbecis da alta burguesia paulista, não se agradou muito e vaiou. Não se sabe se o músico, ou som; o fato é que João entendeu que se tratava dele, ao que respondeu, cantarolando:
“Vai de bêbado não vale, vaia de bêbado não vale...”
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