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  • Foto do escritorA coruja

ronda noturna




A ordem era pra dizimar. A Rondesp detinha o arsenal mais pesado entre as tropas, mas muito pouca estrutura informacional e aporte tecnológico focado em inteligência, o que nos transformava num verdadeiro batalhão de guerra. Muitos dos PM que estão hoje na Rondesp vieram do Batalhão de Policia de Choque e das Companhias Especiais que faziam parte do conjunto dos originais 5 Batalhões da PM que existiam em Salvador. Todos PM antes de servirem na tropa passavam e passam pelo crivo do serviço de informações da PMBA e da Coordenadoria de Missões Especiais. Dizem que temos um perfil “voluntarioso”. Balela. Sabe com quem treinamos? A Rota e o Bope. Perfil sanguinolento, vamos direto ao ponto, embora tenhamos também membros mais maleáveis, ainda afeitos à conversa.


Sobre isso, tenho uma reflexão: os bairros nobres não sabem o que é a polícia militar em seu âmago, essa é a verdade. Os bairros pobres (ou melhor dizendo, empobrecidos), no amontoamento desordenado de casas sem reboco, empilhadas feito fardos, quando notam nossa chegada, já sabem que corpos tombarão. Em rua de rico, abordagem tranqüila, rara de acontecer, geralmente fazemos observação cuidadosa dos transeuntes. Em favela, não tem conversa: é baculejo mesmo, como falam por aí.


Voltando: a ordem era pra dizimar. 2:00h da manhã, pelotão armado, adrenalina a mil. Denúncia anônima de boca de fumo funcionando naquele momento, festa de traficante regada a cocaína, maconha, haxixe e som pesado. Dividimos-nos em dois grupos, um pra boca, outro pra festa. Pusemos as tocas ninja, bandoleiras nas costas, entramos nas viaturas e nos dirigimos ao local. Bairro de preto, como era de se esperar. Favela. Na entrada, ruas vazias e escuras. O ar gélido da madrugada deslizava pelas frestas das janelas do veículo. Eu precisava descarregar o estresse do dia.


Som alto, tiro abafado, vermelho vivo – parte I


Chegamos num local fechado, murado. Dois elementos armados vigiavam a entrada. A princípio ficamos ao longe observando. Parece que não tinham descoberto a presença da ronda no bairro ainda, coisa rara de acontecer. Geralmente tem olheiro 24 horas pelas lajes dos labirintos residenciais. Tava dando certo. Esperamos a deixa; quando um casal ia saindo da festa o atirador derrubou os seguranças da recepção com precisos tiros no tórax. De imediato houve um alvoroço e foi quando invadimos, apontando os fuzis.

Tum, tum, tum, tá, tá, tá, ritmicamente ao som da música o fuzil cantou. Era um tiro, uma queda, os bandidos estavam com arsenal de baixo calibre e foram pegos no susto, já bêbados e chapados.

“Deita todo mundo no chão!” ordenou o subtenente. “Quem se levantar vai se arrepender.”

Se morreu inocente não queríamos saber, isso já era previsto. Durante a saraivada de balas, alguma sempre escapa e acaba atingindo um azarado qualquer, é lamentável, mas faz parte da estatística. Estávamos atrás dos entorpecentes. Não demorou e encontramos dezenas de saquinhos de cocaína, cânhamo prensado, haxixe, bala, LSD, lança perfume e tudo o mais que a corja consumia pra ficar doidona. Mas isso não era o prêmio capital da operação. Já estávamos atrás do malandro há muito tempo, e pelas descrições que tínhamos dele foi fácil encontrá-lo. Gostava de ostentar: colar, relógio e pulseira de ouro, roupa de marca, usava cavanhaque. Era um sujeito bon vivant, como diriam os franceses.


A boca, o ateliê – parte I


A boca ficava numa travessa da rua H. L., na parte mais ao leste da favela. Para chegar até lá a viatura tinha que vencer vários aclives, ruas esburacadas, curvas acentuadas e os homens ainda tinham que realizar um trecho de cerca de cem metros a pé. Diante do local dispensaram cerimônia e simplesmente arrombaram a porta do barraco.

“Perdeu, perdeu!” disse o capitão em tom baixo, porém firme. Rapidamente os canos já estavam apontados para regiões vitais dos presentes.

Trabalhavam na boca duas mulheres, uma adolescente grávida, e dois rapazes que deveriam ter cerca de 20 anos. Sobre a mesa central de trabalho, centenas de pacotes e papelotes contendo drogas, balanças de precisão, vidrarias de laboratório e uma máquina de contar notas. Nas bancadas rente às paredes sem reboco havia malotes e caixas de material pra montagem, reposição de insumos e revenda dos tóxicos. Os policiais foram incisivos:

“Já tão sabendo, né? Vamos adiantando, se não vai todo mundo pro xadrez”

Um dos rapazes foi até uma saleta anexa à boca e voltou trazendo num envelope algo volumoso. O policial recebeu, conferiu o conteúdo e reclamou:

“Só isso? Tá de brincadeira, vagabundo? Vai buscar o resto”

“Tem não”, disse o garoto, num sussurro.

“Teu patrão vai sofrer um bocado em nossa mão”

O rapaz olhava pra baixo, trêmulo.

“Leva ele, capitão” sugeriu o soldado, “essa raça tem que pagar com a vida”

“Que acha, Olho de Cobra?”

“Por mim tudo bem”

“O moleque tá se mijando, capitão”

“Ele ainda vai ter tempo de ficar todo cagado, lá no Beco das Lamentações”

O capitão fez uma ligação pra outra comitiva.

“Cigano, só entregaram a terça parte. Aperta aí pra ver se sai mais”


Som alto, tiro abafado, vermelho vivo – parte II


Traficante não tem piedade de ninguém, comete atrocidade e leva muita criança à perdição. Descemos com ele até o Beco das Lamentações, onde lhe aplicamos uma bela surra. Quando já estava cheio de hematomas, demos o ultimato e garantimos a continuidade do trato como inicialmente combinado. Achou que a Rondesp era grupo de gincana de colegial.


Dirigimo-nos, então, à casa do chefe, verdadeira mansão. Eu pensei, com meus botões: enquanto isso eu trabalho pro Estado arriscando minha vida pra defender a sociedade da bandidagem, ganhando merreca e ainda por cima pagando aluguel. A mensalidade, portanto, vinha sempre em boa hora. Se o Estado não paga, a gente faz nossa correria. Mas a ganância é um negócio viciante: sempre dava tesão pegar naquelas notas novinhas e eventualmente levar um recado pra quem não quisesse contribuir de maneira justa.


A boca, o ateliê – parte II


"Soldado, tá sentindo esse cheiro estranho?" interrogou o capitão, ao saírem.

"Tô sim. É maconha"

Ao rondarem pela travessa, notaram que o cheiro provinha de uma casa vizinha, mas não identificaram exatamente qual. Supuseram se tratar da que exibia felas frestas da janela uma luz bruxuleante. 1, 2, 3: ao arrombarem a porta, encontraram um homem de meia idade sentado diante de uma tela, pincel à mão. Era um conhecido pintor daquele bairro.

"Fumando maconha a essa hora, meu tio? Não deveria estar dormindo?" bradou o capitão.

"Que maconha? Sou um artista, estou trabalhando" disse ele, assustado, levantando-se.

"Auto de resistência"

O líder do pelotão olhou para o soldado e fez um aceno com a cabeça. Nesse momento um projétil atravessou o abdome do pintor e perfurou a tela, lançando uma rajada vermelha por sobre as cores vivas empregadas por ele na representação de algo que parecia ser uma praça num domingo qualquer.

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