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Foto do escritorA coruja

o ex-estranho



Os bares abertos àquela hora estavam bastante convidativos, fiz vênia e adentrei num deles. Ali se dizia que era um famoso risca-faca que atraía os membros do submundo citadino, silenciados. O cheiro do lugar era particularmente marcante, uma espécie de cravo com vapores etílicos e mofo. Quase uma solução química desvairada.


“Uma cerveja, madame” era tudo o que eu queria no momento. Uma cerveja bem gelada. Acendi um cigarro e fiquei observando o movimento.


“Numa ocasião um filho da puta tentou me assaltar lá na Baixa de Quintas, justamente num dia em que eu estava puto por que meu nome foi parar no SPC sem eu dever um centavo a ninguém. Olha rapaziada, se eu dever um centavo a alguém, que venha me cobrar aqui e agora! No meio dessa cambada toda! Bom, aí ele me pegou no dia e na hora errada. O magrelo segurava uma faca e veio pedindo o celular, aí eu só fiz arrastar o ferro da cintura e apontar no meio do tórax dele. ‘E agora, tu vai querer o celular ainda?’ aí ele amarelou e pediu misericórdia. ‘Não, pelo amor de Deus, senhor, é por que eu tô passando fome, eu tô desesperado’, ‘e se tu tá passando fome, por que diabos tu me aponta uma faca e vem pedindo meu celular? Por que tu não pediu comida? Larga essa faca’, ‘é desespero, senhor, deixa eu ir’ Era tarde. ‘Faz o seguinte, ajoelha aí que teu dia chegou’, aí o vagabundo deu pra chorar igual menino pequeno. Guardei o ferro na cintura, dei um sossega leão nele e chamei a polícia.”


“E se o moleque tivesse armado, tu teria essa coragem toda?”


“Claro que não, eu ia me cagar todo e dar o celular pra ele. Ou então poderia reagir, de maneira súbita, e derrubá-lo ou ser derrubado. Um homem armado se sente poderoso, acima do bem e do mal”


Eu ouvia tudo atento, cá do meu canto e tomando minha cerveja. Um compadre sentou-se comigo e nós começamos a conversar.


“De hoje não passa” ele se referia à ação daquela noite. Estava mudado. A barba crescera, ele raspara a cabeça.


“Não, vai com calma, vai com calma”


“Quando ele estiver bêbado, será fato consumado”


Uma menina de olhos de lince passou por mim e colocou a mão em meu queixo, provocadora.


“Vem comigo, meu bem”


Levantei-me qual serpente encantada pelo som de uma flauta doce. Ou algo parecido. Fomos para o quarto miúdo do inferninho, puteiro, bar das putas, “os dias são poucos, as noites são muitas”


“Está armado, meu bem?” disse ela, ao passar a mão em mim.

“Estou duplamente”


Coloquei o revólver em cima do criado mudo, tirei minha calça e a induzi a iniciar o processo. No dicionário, felação. Segurando em seus negros cabelos cacheados e conduzindo sua cabeça, chegamos a uma cadência perfeita; o estalar do atrito e os impulsos elétricos que percorriam meu corpo eram de um prazer indescritível.

“Quando eu cheguei por essas bandas, diziam que por aqui tinha cabra-macho pra tudo quanto era lado, que mandava e desmandava, que surrava mulher, que vendia droga pra criança, mas aí já sabe, onde eu e minha turma chegamos é pra impor ordem, é pra mandar vagabundo pro necrotério”


“O senhor é da milícia, então”


“Cuidado com a boca, neguinho. Se não pode amanhecer cheia de formiga. Aliás, que porra é milícia? A gente faz a segurança da população, só isso”


Ímpeto de vingança


Eu estava quase lá. Ela agora pulava em cima de mim, loucamente, as mãos sobre meu peito nu, a anca subindo e descendo cada vez mais rápida, cada vez mais lenta, cada vez mais rápida, seu hálito quente de boca mal-escovada se confundia com o meu de dentes parcamente higienizados. Eu precisava de um canal. Subitamente: um disparo, dois, três, quatro, cinco. “Isso é tiro?” A prostituta deu um grito e saiu rapidamente de cima de mim, e se escondeu, acuada, debaixo da cama. Eu fiz o mesmo. Daí a pouco ouvi passos apressados no corredor; tapei a boca dela para que não gritasse mais, senão seríamos sumariamente executados.


Quando o clima começou a ficar mais tranqüilo, saí lentamente, vesti minha calça e empunhei o 38. No bar havia corpos no chão e muito sangue. Morreu, inclusive, quem não deveria morrer, simplesmente por estar na hora e no lugar errado, mas aí já era tarde. O valentão miliciano e seu executor, meu parceiro, estavam tombados. O rapaz, inclusive, estava quase saindo do crime, mas resolveu antes disso vingar a morte do pai. Sim, os milicianos tinham espancado seu pai até a morte alguns meses antes. Retaliação. Seu filho pertenceu a uma facção que era rival à apoiada pela milícia, e também por ter se negado a pagar (ou não ter tido o suficiente) a mensalidade da extorsão que vinha sendo praticada. O velho era dono de uma pequena mercearia. Foi um crime bárbaro. Naquele cenário, via-se a conseqüência trágica de um longo e penoso conflito psicológico.


Era preciso sair o quanto antes dali. Logo chegariam a polícia e o Samu. Chamei a menina e saímos pela rua; perguntei se ela tinha lugar pra ir. “Muito longe, tenho medo de ir sozinha a essa hora”. Ela estava um tanto quanto abalada pela cena que vira. Pobre garota, não devia ter mais do que dezoito ou dezenove anos. Eu tentaria consolá-la. Talvez não conseguisse. Ela perguntou meu nome.


“Sou o ex-estranho”


“Como?”


“O ex-estranho. O que veio sem ser chamado e, gato, se foi sem fazer nenhum ruído”

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