Rio de Janeiro, 1970.
Passava das dez da noite quando Baden Powell chegou à casa de Vinícius de Moraes, na Gávea. Baden estava empolgado porque acabara de conceber um samba e queria mostrar a Vinícius para que ele fizesse a letra.
- Passei a noite toda, de ontem pra hoje, compondo essa belezura. Quero muito mostrar pra você.
- Pode sentar e começar a dedilhar – respondeu o poeta.
- É um samba triste, Vinícius.
- Mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza. Vou até abrir uma garrafa do nosso melhor amigo.
O poetinha costumava dizer que o uísque é o cachorro engarrafado.
Baden ajeitou o óculos e iniciou a peça.
O bonito samba de Baden fora tonalizado em Sol menor, e o compositor o fez não à toa, já que no sistema harmônico ocidental, baseado nas tríades, os tons menores denotam tristeza e melancolia. O compasso era binário 2/4 e sincopado, característico do samba. Ao fim, o poeta, que jazia sentado numa cadeira ao lado do compositor, tragou um gole de uísque e disse:
- Toque mais uma vez. Este samba é muito lindo e ao mesmo tempo muito familiar.
Baden não pestanejou. Assim passaram a noite, tocando violão, cantando e conversando muito, sobre os mais diversos temas, da música que era a própria vida ao erro da vida sem música, do Rio e suas belas mulheres, da boemia, da Ditadura que assolava o país... tudo regado a muito álcool e cigarros.
Na terceira garrafa do destilado, Vinícius já acendia o cigarro ao contrário, mas Baden continuava ágil na execução do dedilhado em seus sambas, e também do samba que ele trouxera ao estimado amigo. É que Vinícius só conseguia inspiração assim. Não era só chegar lá e entregar a partitura a ele. Era preciso conquistá-lo e satisfazê-lo antes de mais nada. Sempre assediado, uma letra do poeta era coisa desejada por quase todos os compositores de violão da época, que vivia o auge da Bossa Nova.
Passava das 4 da manhã. O ar gélido entrava pelas janelas entreabertas.
- E aí, poeta?
- Não sei, Baden. Tem uma coisa nessa música que não está fazendo sentido, ou está muito bem, mas me inquieta.
- Inquieta como?
- Deixa pra lá, não quero encher seu saco.
- Nós somos amigos, poeta. Estamos somente eu e você aqui, entre quatro paredes, não tem porque esconder uma inquietação sobre a canção. Seja franco.
- Olha, Baden, é o seguinte: eu estou achando que essa música é plagiada.
O violonista ficou estarrecido por um momento. Ao que respondeu:
- Como assim plágio, Vinícius? Eu a compus de ontem pra hoje, nem dormi, foi feita toda de uma vez, o que torna impossível ser originada de plágio.
- Não sei... ainda assim me parece plágio.
- De quem seria então?
- De um prelúdio de Chopin.
- Impossível. Eu escuto Chopin desde adolescente, sei todos os seus prelúdios e noturnos, não é Chopin.
- É Chopin.
- Não é. Existe uma influência das Bachianas do Villa Lobos, mas você está de pileque e quer implicar comigo.
- Vamos fazer um tira-teima. Vou chamar a minha mulher para averiguar.
- Mas ela está dormindo, Vinícius... não faça isso.
- Ela não liga! Maria é uma pessoa muito doce e compreensiva.
O poeta foi até o quarto e chamou a esposa. Ela acordou e ainda meio sem entender o que estava acontecendo, chegou à sala e deu de cara com Baden Powell segurando seu violão, e ao redor dele, no chão, várias bitucas de cigarro.
- Maria – disse Vinícius de Moraes – escuta bem este samba do Baden e confirma pra mim se não é um plágio de Chopin.
Baden então tocou o samba pela centésima vez, mas era como se fosse a primeira. Maria escutou atentamente, ela era pianista e também tocava as composições do pianista polaco, e pôde dar o veredito final:
- Não é Chopin.
- Sério? – respondeu Vinícius, atônito.
Baden exibiu um sorriso de satisfação.
- Então Chopin esqueceu de fazer essa – emendou o poeta.
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