Não, eu não sou comunista. Expresso aqui desde já que não pretendo defender nenhum regime de governo, independente de suas bases ideológicas ou estrutura de Estado. Precisamos, por breve que este texto seja, falar sobre o Programa Mais Médicos.
Primeiro ponto: não, o Programa não terminou. O alarde do fim foi dado como uma hecatombe, mas na verdade o Mais Médicos é parte de uma ampla estratégia do Governo Federal que visa melhorar o atendimento a usuários do SUS, levar mais médicos – como o próprio nome do Programa indica – para regiões onde há escassez ou ausência desses profissionais (antes do PMM, vale lembrar, cerca de 700 municípios brasileiros não contavam sequer com um único profissional para atender sua população). O Programa, ainda segundo o Ministério da Saúde, prevê também mais investimentos para a construção, reforma e ampliação das Unidades Básicas de Saúde, além de ampliar as vagas da graduação em Medicina e residência para a qualificação e especialização desses profissionais.
É preciso destacar ainda os três principais eixos que estruturam o PMM, a saber:
1. Provimento emergencial. O Programa iniciou-se em 2013 com a abertura de 18.240 vagas em 4.058 municípios de todo o país, cobrindo a maior parte das cidades brasileiras e Distritos Sanitários Especiais Indígenas, consolidando, pelo menos em tese, assistência para mais de 63 milhões de pessoas.
2. Educação. Basicamente a proposta educativa do PPM passa pela reestruturação da formação médica no país, ampliando o número de vagas nas faculdades de Medicina e nos cursos de residência médica.
3. Infraestrutura. Foram destinados cerca de 5 bilhões de reais para a construção de novas UBS, reforma e ampliação das que já existem, de modo a melhorar a Atenção Básica no país, a qual é responsável pela resolução do problema de 8 de cada 10 pessoas que buscam os serviços de saúde.
Isto dito, já temos uma visão geral do PMM e de sua importância para o Brasil; e os cubanos, onde entram nessa história? Para isso, é preciso resgatar o capítulo IV da Medida Provisória N° 621, de 2013, que instituiu o Programa. Tal capítulo, em seu primeiro parágrafo, dispõe da ordem de prioridade de ocupação das vagas, a saber: I. Médicos formados em IES brasileiras ou com diploma revalidado no país; II. Médicos brasileiros formados em IES estrangeiras e que tenham habilitação para o exercício da medicina no exterior; e por fim, III. Médicos estrangeiros com habilitação para o exercício da medicina no exterior. É este inciso que sustenta e dá base legal à contratação de cubanos e profissionais vindos de outros países da América Latina e Europa para exercerem a medicina no Brasil.
Das 18.240 vagas às quais já foi feita referência, cerca de 8.332 são ocupadas por médicos vindos de Cuba. Portanto, eles não estão/estavam aqui simplesmente por que o PT era um apoiador da Ditadura comunista cubana, mas porque esta pequena ilha do Caribe é uma referência mundial em saúde pública, principalmente no quesito Atenção Primária, e porque forma muitos e bons médicos, sendo que eles atuam/atuaram não só no Brasil, mas em outros 60 países ao redor do Mundo.
No preenchimento das vagas, ficou claro que os médicos brasileiros – mesmo que o CFM ressalte que temos médicos suficientes, e de fato temos – não as ocupariam em sua totalidade, assim, o déficit foi suprido por estrangeiros. O mérito da justificativa para o fato dos brasileiros não terem ido para as regiões mais remotas e pobres do país fica pra especialistas no assunto, mas há questões relativas à falta/deficiência de infraestrutura, quebra de contratos, salários pouco atrativos, desmandos políticos, etc. As evidências apontam, no entanto, que isso não foi empecilho para os cubanos. Não que são toleráveis, muito pelo contrário. Sejamos honestos que estabilidade financeira e boas condições de trabalho são pontos fundamentais para a permanência dos profissionais, mas quem foi que disse que a vida era fácil, companheiros? E terceirizar os problemas, é também o mais correto a se fazer? É justo abandonar uma população majoritariamente pobre à míngua, sem atendimento, por causa de valores estritamente pessoais? São questionamentos, apenas.
Com as recentes e polêmicas declarações de Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde Pública de Cuba decidiu sair do Programa, por julgá-las depreciativas e ameaçadoras à presença dos médicos cubanos no Brasil, e também por Bolsonaro ter reiterado que iria alterar os termos e condições do PMM, com desrespeito à OPAS (Organização Panamericana da Saúde) e o que foi acordado entre os dois países. Assim, é previsto a ociosidade de cerca de 8 mil vagas que estavam ocupadas pelos cubanos, além das 2 mil que o Programa apresenta e que não conseguiu suprir. Haverá, nesse sentido, 10 mil vagas para médicos no país, as quais, segundo o Governo, serão ocupadas por novo edital a ser lançado ainda este ano. A pergunta que vale um milhão de dólares é: será realmente possível prover esta colossal demanda com médicos “genuinamente” brasileiros?
Não tenhamos dúvida, entretanto, de que houve um imenso deslize, intencional ou não, por parte de Bolsonaro e seus asseclas, ao imporem condições não previstas pela MP 621 sem uma essencial mediação diplomática a ser realizada de maneira bilateral com Havana. Por trás desta decisão, existiria realmente um interesse genuíno e filantrópico para com nossos irmãos de Latino-América, ao desejar que eles recebessem salário integral e que pudessem trazer suas famílias para cá? O art. 18 já prevê isso, embora o visto de permanência seja temporário... E se o Revalida é realmente importante, qual a justificativa, tendo em vista que a atuação dos médicos intercambistas é restrita (e exige comprovada experiência e formação voltada para Atenção Primária) e fora acordada por intermédio da OPAS?
Bem, quanto ao salário recebido pelos cubanos (cerca de 3 mil reais), talvez haja um consenso de que realmente é baixo para os padrões brasileiros. E muitos também dirão os 75% (cerca de 8 mil reais) que vão para Cuba servirão para “financiar ditadura”. Concorde-se ou não com a ditadura comunista, descobertas pioneiras em medicina foram feitas lá, como o desenvolvimento da primeira vacina efetiva contra a meningite B. O país insular também treinou, nos últimos 55 anos, mais de 35 mil profissionais de saúde de 138 países, gratuitamente. Americanos saem dos EUA para ir buscar tratamento e fazer cirurgias na ilha, que presta serviços de altíssima qualidade e a baixos ou nenhum custo.
É preciso, ainda, entender que Cuba tem a “diplomacia médica” como um de seus carros-chefe, que garante, por exemplo, a entrada de moedas fortes como o dólar, além de conferir legitimidade e influência no exterior. Assim, a lógica é a da "venda" de mão de obra médica, mas o país também realiza missões em Nações acometidas por crises humanitárias, dando contribuições importantes, por exemplo, na luta contra o vírus ebola na Libéria, Serra Leoa e Guiné.
Mesmo diante deste cenário, há de se convir que, se a intenção era "nacionalizar" a mão de obra médica, ou pretensiosamente modernizá-la, era importante que houvesse pelo menos uma tentativa de reformular os acordos, ou programar uma transição gradual para que médicos brasileiros pudessem ir ocupando as vagas que fossem surgindo. Mas o que houve, de fato, foi uma estratégia de ataque, ideológica e venenosa.
Os números deixados pelo PPM estão na internet para qualquer cidadão acessar e ver que, a despeito de qualquer polêmica, critério técnico ou divergência ideológica, a população se mostrou bastante satisfeita. 95% de aprovação pelos usuários, sendo que 85% disseram que o atendimento médico está melhor ou muito melhor. A partir da saída de Cuba, fatia importante do Programa se perde, assim como a tradição destes valorosos profissionais que praticam uma Medicina abnegada, preventiva e pioneira. Ao fim, diante deste problema agora interno, é mais do que necessário que o Mais Médicos se reconstrua e continue levando saúde de qualidade para todos os cidadãos brasileiros, do contrário, muitas vidas acabarão ceifadas por um simples capricho de governo.
Referências:
1. Programa Mais Médicos – Governo Federal. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/
2. Diário Oficial da União (DOU): Medida Provisória N° 621, Institui o Programa Mais Médicos e dá outras providências. http://189.28.128.100/maismedicos/mp621_maismedicos_.pdf
3. Folha de São Paulo. http: //www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/entenda-como funciona-o-mais-medicos-e-por-que-cuba-decidiu-deixar-oprograma.shtml
4. O Tempo. https://www.otempo.com.br/capa/mundo/americanos-viajam-a-cuba-em-busca-de-alternativas-m%C3%A9dicas-1.1009108
5. BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46247632
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