Loia acordou mais cedo que o habitual naquele dia. "Hoje terei trabalho", ponderou. Ao canto matinal do galo, se levantou, fez sua oração, se benzeu e foi até a cozinha beber um copo d'água. Adentrando ao alpendre dos fundos da casa, se deparou com a caatinga verde-úmida e inspirou o ar gélido da madrugada. Aquele seria um dia crucial. Loia, juntamente com Leno, Augusto e Zé Camilo iriam buscar a fera. A fera ruminante, conhecido boi Incantado, cuja fama se espalhara na região pela fúria que exibia ao ser acuado e pela dificuldade na lida com sua personalidade imprevisível. Mas Loia e os outros foram incumbidos por Abreu Lima, dono de Incantado, para que pudessem capturá-lo na vasta imensidão da caatinga de seu latifúndio. Ele não gostava desse termo, chamá-lo de latifundiário era então um insulto pra sua pessoa. Bem ao longe, já ouvia o galope à terra dura dum cavalo a se aproximar. Em pouco tempo viu a cancela ser aberta num ranger característico. Era Leno, o primeiro a chegar.
- Bom dia, Loia.
- Bom dia.
Sujeito da labuta sob o sol, tal qual Loia, catingueiro, Leno tinha vincos no rosto que lembravam os castigos da mata bruta, seca e ríspida.
- Abreu Lima mandou recado ontem à noite por Rufino.
- Que bom, pelo menos isso. Mas a paga vai ser boa também.
- Tem que ser. Não minto a você que eu tô num gosto arrinado de pegar aquele pai de curral.
- Os vaqueiros de Abreu Lima vão ajudar nós?
- Acho que vão, aqueles frouxo.
- Augusto e Zé Camilo tão demorando.
Por coincidência, naquele momento um trote ecoou pelo alpendre, indicando a chegada dos outros dois vaqueiros.
- Bom dia senhores – Augusto era o mais velho do grupo. Dos seus 50 anos, parecia ter 60 ou 65. – vamos pegar a estrada, o dia vai ser longo.
Ao saírem do rancho, o sol nascia por sobre a caatinga. Em fila, os quatro vaqueiros perfaziam a tropa e cortavam o vento a trote sobre a areia branca. Contavam piadas, histórias de outros tempos, e de vez em quando Loia soltava a voz na entonação de uma cantiga de amigo, que muito agradava os companheiros:
Vem amiga visitar A terra, o lugar Que você abandonou Inda ouço murmurar Nunca vou te deixar Por Deus Nosso Senhor...
À certa altura da viagem resolveram dar uma parada em casa de compadre para estirar as pernas e dar água aos cavalos.
- Ô de casa!
Os cachorros latiram.
- Vai entrando! – respondeu o anfitrião
Era Sabino, velho amigo de todos da tropa. À semelhança da casa de Loia, o rancho do malungo tinha um amplo terreiro com algumas árvores frutíferas sombreando o lugar, sob as quais repousavam gaiolas e onde os cachorros ficavam à corrente; o velho os aguardava sentado num banco de cimento no alpendre da casa, onde sorvia um café bem quente.
- Café?
- Aceitamos.
Sentaram em bancos no alpendre e enquanto saboreavam o café de Sabino, conversavam sobre a missão daquele dia.
- Vocês sabem que ele lá tem parte com o cão... – disse Sabino em certo momento.
- Apois, do cão eu tenho é nojo – emendou Leno, cuspindo na terra.
- Na região não se encontrou vaqueiro pra pegar o bicho, e o dono quer vivo. A fama vem de longe.
- Por isso a incumbência foi dada a nós. – disse Augusto. – Abreu Lima quer vaqueiro acostumado a pegar boi brabo em miolo de caatinga. Em 29 a gente deu cabo de outro dessa raça, foi um que quase matou Zé Camilo, não foi, Zé?
Zé olhou para os homens de soslaio e assentiu com a cabeça. Era catingueiro bruto e calado.
- Esse deu azar – disse Loia. – o sangue esquentou, Zé cortou o cangote do bicho no aço frio, quando amarraram.
- Mas o Incantado é diferente – disse Sabino.
- Diferente como? – perguntou Leno.
- Ninguém vê o bicho de dia.
- Não vê porque não procura! Ele deve se entocar em alguma grota.
- É por isso que botaram esse nome nele, Incantado. Dizem que o bicho vira gente de dia, e de noite vira o demônio em forma de boi.
- Valha-me Nossa Senhora. Isso é história, lenda de antigo. Eu não acredito nessas coisas não.
- Boi bravio já se viu em toda terra, meu bisavô já pegava desse tipo no sertão de Pernambuco. – disse Augusto, acendendo um cigarro de palha. – Mas desse tipo eu nunca ouvi falar, boi que vira gente.
- Conversa besta. – disse Leno. – Mas de todo jeito, vire ele gente, seja ele boi, seja o diabo, vai cair na corda. O destino dele já tá traçado.
Já descansados, recobrado o fôlego, montaram nos cavalos para retomar o trecho.
- Não ficam pro almoço? Tem uma carninha seca com farinha hoje.
- Não, Sabino. – disse Augusto. – Vamos almoçar tarde, já em Abreu Lima. Trouxemos umas rapaduras no aió que dá pra segurar a fome até lá. Se a gente fica, atrasa a viagem. Mas obrigado, amigo.
Prosseguiram. Já na barra da tarde, o sol ardia, impiedoso. O silêncio entre eles só era quebrado pelo trote dos cavalos, já suados, e pelo som do vento seco que cortava a caatinga, também castigada. Aqui ou acolá viam um bando de urubus em rodamoinho, certamente beirando a carcaça de algum animal morto. Num dado momento repartiram a rapadura, que já tinha a superfície derretida em melaço pelo calor. Leno não escondia sua ansiedade:
- Que diabo de fazenda longe é essa? Não chega. Já tô com a coluna entrevada, vamos dar uma parada numa sombra.
- Paciência – disse Augusto – o recado era que depois da serra a fazenda despontava na altura do barranco. A serra é aquela – apontou.
- É a Serra do Ninho da Pintada. – informou Loia.
- Isto mesmo – redarguiu Augusto – tem esse nome por causa de uma história que meu avô já me contava.
- Que história? – perguntou Leno.
- Ninho da Pintada – prosseguiu Augusto – naquela época tinha muita onça na região. Os mais velhos contam que elas matavam todo tipo de bicho de criatório, gado, cabra, cachorro e até gente. E foi no alto dessa serra que eles encontraram, depois de uma longa procura, uma ninhada de onça pintada com mais de 5 filhotes. A onça não tava na hora, tinha saído pra caçar.
- Mataram os filhotes?
- A facão.
- Misericórdia...
- É triste, mas era eles ou os filhos dos homens que fizeram isso. No sertão, é o mais forte que sobrevive.
- E a onça?
- Numa outra caçada, vaqueiros da região mataram ela, e tantas outras, e hoje só resta a história marcada no nome da serra. Dizem que em noite de lua, a alma da onça ainda vaga pela serra, inconformada com a perda da ninhada.
Ao pararem para um breve descanso sob os galhos espinhosos de uma frondosa quixabeira, ouviram um som peculiar que vinha de um lugar próximo.
- Tem alguém tocando violão. – disse Loia.
O som era bonito, as notas eram melódicas e ágeis, parecia um violeiro de antigo executando um concerto. Puxaram a rédea dos cavalos e, num trote vagaroso, se aproximaram da entrada da chácara, beirando a cerca e a cancela. O violeiro estava na varanda, sentado num banquinho e abraçado ao seu violão. Tinha uma cabeleira branca e entoava uma canção que eles não conheciam:
Todo cantadô errante Trais nos peito u'a marzela Nas alma luá minguante Istrada e som de cancela Fonte qui ficô distante Qui matava a sêde dela E o coração mais discrente Dos amô da catinguêra
- Que coisa bonita esse velho toca. – disse Loia. – vocês conhecem ele?
- Eu conheço. – disse Zé Camilo. Todos se assustaram, era a primeira vez no dia que ele falava alguma coisa. – o nome dele é Hélio Omar. Violeiro velho, faz a própria música.
- Ele que inventa essas coisas que ele toca? – perguntou alguém.
- Isso. Tudo ele que inventa.
As cantoria prosseguia.
Ai, o amor é uma serpente
Esse bicho morde a gente
Vamos pois cantar parcela, ai, ai...
- Vamos correr trecho? – disse Augusto.
Voltaram à estrada. Depois de mais algumas horas de viagem, já à tardezinha, depois de passarem rente ao sopé da serra, avistaram a fazenda de Abreu Lima. Era de perder de vista. Nunca tinham visto tanta terra cercada, a caatinga quase toda derrubada tinha virado pasto pro gado.
- Abreu Lima! Ôooa! – bradou Augusto.
Um vaqueiro veio ao encontro da tropa e a levou até o velho Abreu Lima. Este aparentava ter por volta de 70 anos, pele vermelha queimada do sol, bigode grisalho à face. Ele conversava com um rapaz, em tom de ordem. Quando avistou seus convidados, externou um largo sorriso.
- E aí, seus cabra macho! Que bom que vieram. Como estão?
- Bem – responderam. – Que horas vamos pegar o bicho? – inquiriu Leno, ansioso.
Abreu Lima deu uma risada debochada.
- Não demora. Primeiro, tirem a sela e as brides dos cavalos, deixem pastando alguns minutos. Romualdo, coloque água nos cochos. Vamos entrando, tomar uma água, comer alguma coisa.
O casarão impressionava pelo grande luxo interior. Móveis em madeira nobre, piso de madeira, cômodos amplos e bem iluminados. Os catingueiros não estavam acostumado com aquilo, por isso ficaram algo intimidados.
- Podem se sentar, vou pedir a Ana que coloque o cozido de bode que ela fez hoje, tá muito bom. – Nesse meio tempo, Ana, sua mulher, já trazia os pratos. Enquanto ela colocava as panelas sobre a mesa, Abreu Lima descrevia aos quatro homens a missão que eles tinham pela frente.
- Vocês têm um trambolho. Esse diabo desse boi é amaldiçoado. De dia, ele some. Não tem quem ache o desgraçado em canto nenhum. Deus me castigue, se eu estiver mentindo. Eu já procurei com Romualdo, dias a fio. Não acha. Não acha! Mas ele me contou que certa noite deu de cara com a fera, mas correu de medo porque o bicho tava soltando fogo pelas ventas.
- Fogo de verdade? - perguntou Loia.
- Fogo, de encandear o breu mais escuro, de queimar o capim seco e fazer coivara.
O semblante dos homens era de incerteza, e ao mesmo tempo, de desconfiança. Eles não admitiam abertamente, mas pelos olhares trocados a conclusão era só uma: Abreu Lima estava ficando caduco, à beira de perder a sanidade mental, e estava contando uma boa história “pra boi dormir”, para instigá-los ainda mais a caçar Incantado.
- Bom, que horas saímos? - questionou Augusto.
- Meia noite é ideal. Descansem, tem cama a vontade pra vocês aí. Meia noite a gente sai.
Assim, os vaqueiros tomaram banho e foram descansar. Não é possível dizer que eles dormiram, mas que passaram a noite. Pois não saía da mente deles um só momento o desafio que estava por vir. Pelo que Abreu Lima tinha explicado antes de se retirarem para os aposentos, eles pegariam um touro guzerá, que é uma raça de gado zebuíno de grande porte, chifres longos em forma de lira.
Em meio a cochilos e sobressaltos, levantaram pouco antes da meia noite foram até uma dependência, onde Abreu Lima os aguardava. Sob a luz do candeeiro, colocaram as vestes de couro: gibão, chapéu, guarda peito e perneiras. O velho fazendeiro então abriu um armário, de onde tirou dois mosquetões modelo 22, entregando um a Augusto, e pegou mais três revólveres calibre 32, os quais entregou a Leno, Loia e Zé Camilo. Este último se recusou a pegar na arma.
- Só trabalho com lâmina.
- Pegue, rapaz. - disse Abreu Lima - Não queira se meter com aquele diabo desarmado não.
- Sou devoto de Nossa Senhora, não vou pegar em arma. Fique com você.
Antes de selarem os cavalos, ainda tomaram um café quente com requeijão feito na fazenda, depois disso seguiram pela trilha.
- Nós vamos juntos até o lado de cá do morro do açude - disse Abreu Lima - e de lá, dois vão pela esquerda, e três pela direita, até a gente se encontrar nos pés de angico do outro lado. Desconfio que ele deva estar por lá, essa raça gosta de beber água de madrugada. Se ele correr, ponham os cavalos em cima, cortem ele de facão. Lacem e derrubem. Se ele vier em cima de vocês, abram fogo, sem piedade.
Àquela hora o ar gélido entrava pelas narinas, causando arrepios, muito embora estivessem aquecidos com os trajes de couro. Os cinco intrépidos homens cortaram, soturnos, a vegetação xerófila sob um céu estrelado, e aqui ou ali ouviam as vozes da caatinga: grilos, corujas, morcegos e até o canto da voz-da-lua. A caatinga estava viva. Prosseguiram na estreita trilha por cerca de uma hora até chegarem num campo aberto, com caatingueiras, mandacarus, xique-xiques e juremas esparsas, a relva fina por sobre o lajedo.
- Estão vendo aquele morro? - apontou Abreu Lima, voz baixa, quase um sussurro. - Ali nós nos separamos. Do outro lado é o açude. Vamos eu e você, Augusto, por um lado, já que estamos com os mosquetões, e os outros três pelo outro lado. Nos encontramos na outra margem.
Assim o fizeram. Margeando vagarosamente o barranco do grande açude, que se desvelava abaixo com suas águas escuras, em certo momento notaram uma débil luz, parecia uma chama, à frente deles a menos de 100 metros.
- Tá vendo, Augusto? - disse Abreu Lima, voz embargada. - O demônio já está soltando fogo pelas ventas, de dentro do mato.
Augusto de se benzeu.
- Deus me defenda de todo o mal, amém. - rezou Augusto.
- Chega atirando. - disse Abreu Lima. - Esse bicho tá com sede de sangue.
Na outra margem, Leno e Loia já empunhavam as armas. Eles estavam cada vez mais próximos, e a besta fera podia atacar a qualquer momento.
- Vou cortar ele na faca. - disse Zé Camilo, desembainhando a peixeira.
- Zé, fica mais atrás. Tu tá mais indefeso - disse Loia.
- Indefeso nada, desgraçado, desgarrado dos infernos, vou degolar esse satanás é agora!
Zé Camilo desferiu um golpe de chicote na anca do cavalo e disparou na frente dos companheiros em direção à chama, disposto a laçar ou sangrar Incantado. Que surpresa não teve ao se embrenhar na caatinga quando percebeu que não havia ali boi nenhum, demônio nenhum, besta fera nenhuma, mas um grupo de homens armados que estavam preparando um grande braseiro para fazer, provavelmente, um churrasco. Incantado tinha desencantado. Após um disparo, Zé Camilo tombou.
- São cangaceiros! - gritou Augusto - Voltem!
A partir daquele momento ouviu-se uma saraivada de balas que iluminou a noite tal qual um lampião. Foram intensas e contínuas rajadas, disparadas de ambos os lados, entre gritos de guerra e de dor.
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