Em 1808 D. João VI de Portugal aportava com a família real em terras brasileiras, especificamente em Salvador, na então Capitania da Bahia. Entre as medidas tomadas pelo monarca no mesmo ano, com vistas a promover o desenvolvimento econômico e social da província, incluíram a abertura dos portos às nações amigas, a criação da imprensa régia, do Banco do Brasil e a fundação de escolas médicas, como a Escola de Cirurgia da Bahia e a do Rio de Janeiro. A primeira converteu-se, posteriormente, em Faculdade de Medicina da Bahia (1832). Em 1946 a FMB foi incorporada à UFBA junto a outras unidades de ensino da mesma universidade. Sua memória está resguardada pelo magnífico edifício que abriga a sede da Faculdade, localizado no Largo do Terreiro de Jesus, no Pelourinho. Projetada pelo arquiteto francês Victor Dubugras (que inspirou-se nas linhas da arquitetura clássica), a obra do atual prédio da FMB foi tocada pelo engenheiro baiano Theodoro Sampaio, no ano de 1905, após tenebroso incêndio que destruiu quase que totalmente a antiga sede.
A conformação clássica do prédio cor de salmão não é mérito apenas da fachada. Seu interior também se iguala em beleza e nos remete às origens da Medicina no Brasil, seja através da presença de elementos da arquitetura grega em colunas, capitéis, portas e paredes curvas com teto abobadado, seja pelas estátuas de grandes mestres da Medicina mundial e da própria Faculdade que abundam em corredores e nos pátios. O Memorial também é esplêndido e guarda numerosas preciosidades dos primórdios da ciência médica no Brasil, a exemplo de equipamentos científicos dos séculos XIX e XX, além da mobília clássica em madeira nobre. O culto da Faculdade aos seus construtores intelectuais é marca registrada: nas amplas paredes - na chamada "Sala dos Lentes" - é possível observar, em molduras douradas e ovóides, dezenas de pinturas dos bustos de professores que por ali passaram, todos com beca preta e manto verde sobre o ombro. Nesses quadros é preponderante a figura masculina (não notei nenhuma professora), rostos sérios e hirsutos, e a constância do bigode bem conservado à face.
Entre esses renomados professores é possível notar as figuras de vultos como Manuel Vitorino, Afrânio Peixoto, Nina Rodrigues, Oscar Freire, Alfredo Brito, Juliano Moreira, Martagão Gesteira, Prado Valadares, Pirajá da Silva e Gonçalo Muniz. Cada um desses nomes foi pioneiro na área em que atuou e contribuiu decisivamente para a consolidação da pesquisa e do ensino médico no Estado da Bahia e dos rumos da própria FMB.
Vale lembrar que o prédio também abriga um amplo acervo de caráter histórico, contendo documentos da burocracia da antiga Escola de Cirurgia, manuscritos, teses, artigos científicos, livros e uma coleção completa do Flora Brasiliensis, monumental obra sobre botânica escrita entre 1840 e 1906 com poucos exemplares no mundo. Com isso, nos recantos da FMB original estuda-se não apenas a Medicina propriamente dita, mas a própria história dessa Medicina que ainda tem muito a oferecer aos acadêmicos e à sociedade. Sobre este valioso espólio, diz o professor Antonio Britto: "Miasmado pela atmosfera asfíxica e misteriosa dos arquivos, deixo-me enfermar e contagiar pela febre da pesquisa dos tempos pretéritos, que leva ao delírio e quimérica sensação de estar vivendo em plena Bahia provincial no século XIX.”
“Atentai, ó vós que estais a pisar este chão. Este chão é sagrado. Este chão, este solo, esta terra são ungidos, são consagrados, são abençoados pelos deuses da Medicina. Este é o chão do santuário da Medicina primaz do Brasil.” - Antônio Carlos Nogueira Britto, sobre a Faculdade de Medicina da Bahia – Terreiro de Jesus
O Salão Nobre, por sua vez, é espetacularmente bem adornado; amplo e ladeado por janelas que dão para o Largo do Terreiro, em seu teto pendem luxuosos lustres e um bastão de esculápio dourado com duas serpentes verdes entrelaçadas.
Entrar ali não é necessariamente um privilégio ou um evento marcante, mas serve para nos lembrar de que a Medicina e a própria Ciência foram – e são – construídas com muita labuta e reunião de grandes mentes sedentas por conhecimento e iluminadas pelo pioneirismo, sem esquecer, obviamente, da essencial ajuda da comunidade ao seu redor. Para erguer obra monumental como essa – material e espiritualmente – aqueles homens deveriam ter verdadeiros delírios de grandeza. Delírios estes que os absorviam, e os dominavam, dia e noite. Talvez seja isto que nos falte hoje em dia. Acabrunhados pela letargia cotidiana e pela descrença, parece que perdemos aquela vontade de poder (de fazer e mudar a realidade) que tanto dominam os pioneiros – justamente os que foram acometidos por tais delírios.
Juntos, somos maiores. O sentido de pertencimento motiva ações louváveis. A sociedade merece o retorno de seus investimentos, sob a forma da atuação de profissionais competentes, éticos, humanistas e dispostos a fazer a diferença, nem que saiba em pequenos passos. A história da FMB como que nos instiga e não desistir dessa ideia.
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