No dia 07 de abril, soldados do exército alvejaram com 80 tiros de fuzil o carro de uma família que se dirigia a um chá de bebê, no Rio de Janeiro. Quando bandidos armados, membros de uma quadrilha ou organização criminosa, fazem isso, é porque nossa sociedade não vai bem. Mas quando é o Estado que faz isso, aí o buraco é mais embaixo. Isso indica a falência da Segurança Pública enquanto política de Estado, que deveria justamente proteger seus cidadãos. Indica também que podemos estar vivendo num ambiente semelhante ao que está submetido ao totalitarismo, onde a lei é a lei da selva.
Onde não há o menor apreço pela vida humana, respeito à dignidade e liberdade de ir e vir, numa clara demonstração de rompimento com os mais fundamentais valores intrínsecos aos direitos humanos, a civilização não é possível. Se um patrimônio é danificado, roubado, ou destruído, ele pode ser restaurado, tendo em vista o caráter perene da matéria; mas uma vida perdida não pode ser restituída, e sua ausência causa sofrimentos indizíveis e indeléveis a famílias inteiras.
Infelizmente, estamos vivendo num tempo onde o discurso de ódio não apenas é legitimado pelas autoridades (vide Witzel no RJ, Doria em SP e o próprio Bolsonaro, cuja ligação com as milícias é escandalosa) como também estimulado e usado como cortina de fumaça para incitar uma guerra civil “fria”, onde não existe uma conflagração ampla e aberta, mas onde as relações interpessoais e de convivência estão permeadas pela intolerância.
Isso cria um ambiente hostil, impróprio à democracia. Jair Bolsonaro e seus asseclas não estão preocupados com a pacificação do país ou restabelecimento da organicidade das instituições, mas objetivam, sobretudo, utilizar uma guerra híbrida como forma de governo, já que não possuem competência (ou interesse) para fazer o país progredir nos moldes do bem-estar social. Tal guerra híbrida consiste na utilização das redes sociais e dos meios de comunicação oficiais do governo para propagar mensagens ideológicas que amplificam a percepção de inimigo interno, claramente imaginário, que no caso brasileiro é comunismo e o socialismo (mais recentemente, membros do próprio Governo), o ataque à moral (caolha) e correlatos. Isso dá espaço à geração de conflitos – inclusive os que resultam em violência física.
O Presidente é claramente um analfabeto funcional, isso nós não podemos deixar de duvidar. Mas esse analfabetismo funcional é realmente inocente como muitos teimam em imaginar?
A elite brasileira encontrou nele, claramente, sua imagem e semelhança: nele se vê ignorância (desconhecimento básico dos problemas e virtudes brasileiras) racismo, intolerância, homofobia, violência intrínseca (a violência como linguagem) e entreguismo. Entreguismo aqui remete ao completo desapreço pela soberania nacional – vide a entrega de Alcântara, dos nossos prolíficos campos de petróleo e logo mais da Amazônia. Nesse contexto, o alinhamento com Israel-Chile-EUA se justificaria sob quais aspectos, além do simples aparelhamento ideológico de direita? Uma nova desordem mundial, talvez. Nessa desordem, nós sairemos no prejuízo. E vai demorar pra recuperá-lo.
À deriva, contudo, nós não estamos. Isso porque há ainda, no país, setores progressistas que estão nas trincheiras da resistência, lutando contra os desmandos, as arbitrariedades e os ataques frontais à democracia. Aqui, entretanto, não se trata somente de identitarismo puro e simples, mas de um debate amplo sobre os indicadores em saúde, educação, segurança e cultura, por exemplo – além da análise dos principais movimentos do Governo.
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