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  • Foto do escritorA coruja

Estive no farol e me lembrei de você




Era fim de tarde quando os garotos, voltando do passeio, resolveram passar no Farol da Barra para apreciar o pôr do sol mais belo da Bahia. Num canto do gramado alguns jovens tocavam violão, enquanto outros se aglomeravam à beira do parapeito e aplaudiam o repouso do astro que se esvaía no horizonte.


Decerto ali não havia qualquer preocupação; a vontade de viver era concomitante à apreciação da beleza do arrebol enquanto o futuro despontava, longínquo. E o passado, ali, que importava? O real e o importante era o momento vivido, o prazer conjunto, a imaginação sortida da aventura e a vontade de abraçar o mundo. Ou a pessoa ao lado.


Voltaram todos pelo passeio da orla, juntos, sorrindo, contando os casos da vida, tão alegres quanto espontâneos, a vida fervilhando na chama da juventude. O casal então se desprendeu da turma e foi fazer uma breve visita ao Cemitério dos Ingleses. Não que houvesse por parte de ambos qualquer apreciação pelo mórbido ou algum parente distante da Grã-Bretanha que estivesse ali sepultado. Ele se lembrava até o bisavô materno, do qual sabia somente o nome, mas não sabia de onde tinha vindo nem para onde foi; ela, se lembrava muito bem do avô materno.


A apreciação ao Cemitério dos Ingleses vem da vista que ele oferece da Baía de Todos os Santos, na sua imensidão azul, dando até mesmo para ver um fio de terra no horizonte anunciando a Ilha de Vera Cruz. O casal então postou-se rente ao parapeito, apreciando a vista de tirar o fôlego enquanto ouvia o zelador local contar a história do famoso Cemitério, curiosamente um pedaço do território soteropolitano cedido pelo Conde dos Arcos Marcos de Noronha à comunidade britânica local, ainda no século XIX, para que enterrasse seus mortos. Entre os ilustres defuntos locais, dois amigos de Charles Darwin que vieram com ele à época da expedição do Beagle.


A menina então beijou-lhe os lábios. Ele estava apaixonado. Mas que futuro havia numa desconsideração precisa ao porvir insólito? O amanhã era muito próximo, era quase o hoje. Uma transição que resvalava em penumbra, no choque de duas individualidades que viviam o tempo que lhes fora concedido, tendo em vista que a vida é um sopro, e nada mais. Ele pensou no amigo, ao qual contaria seu momento de felicidade. Felicidade, isto sim, o gozo momentâneo da eternidade.


Ao irem embora, o rapaz perguntou ao zelador de quem era aquele território imenso em frente ao Cemitério, bastante privilegiado para os padrões do bairro e que encerrava uma única casa, ao redor da qual árvores frondosas tinham fincado raízes, tão velhas quanto à presença humana naquele pedaço de terra luso-brasileiro. Ele deu de ombros. Na verdade, não tinha dono. Era um patrimônio histórico e natural da cidade, demarcado por nobres invasores, e erigido por mãos escravas, das quais ninguém mais se lembrava. Lamentavelmente, propriedade privatizada, de dono ilegítimo. Um espaço tão bonito e tão amplo deveria ser um parque pras mães levarem seus filhos, pros velhinhos andarem e tomarem ar fresco e pros casais namorarem.


Dois anos depois, o rapaz voltou ao Farol, dessa vez sozinho. Era noite e a grande torre emitia seu poderoso facho de luz, guiando naus fantasmas de antanho. Por um momento, ele se lembrou dela. Mas agora não fazia diferença, não havia falta nem vazio, era apenas a memória que costuma ser suscitada em locais que um dia tiveram grande expressão no nosso consciente.

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