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  • Foto do escritorA coruja

Ecos da memória




Abri as janelas do apartamento. Acho que não realizava este gesto há pelo menos dois anos. Dois anos é muita coisa quando se olha pra frente, mas quando se olha pra trás, parece que foi ontem. Aliás, que diabo importa o ontem?


Os raios do sol penetraram a sala e rasgaram minhas retinas que nem uma navalha. Há muito tempo eu não sentia o calor do sol. Minha pele parecia que tinha mofado durante este período, as células da epiderme há muito tempo sonhavam com o calor do sol, ao qual eu tinha abdicado por conta de acontecimentos pessoais que não cabem neste texto.


A campainha tocou. Deve ser Giulia, minha filha, tomara que seja ela. Giulia está desaparecida há dois anos.


Abro a porta e não encontro ninguém. Que diabo, será que é um daqueles moleques do andar de baixo que estarão vindo perturbar o sossego de um homem de 50 anos? Se eu pego um desses pirralhos no flagra, nem sei o que faço...


"João, vamos tocar e sair correndo, beleza?"

"Vamos!"


Ecos da memória.


Faço um café. O cheiro do café é um dos melhores possíveis. Café é necessário. Abro o google e pesquiso: benefícios do café. Há vários. Diminui risco de hipertensão, ajuda no emagrecimento, etc. Agora pesquiso: malefícios do café. Em excesso, pode causar ansiedade, predispor arritmias, gastrites, etc. Ora, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Assim é com café, assim é na vida. Mas muitas coisas nós não sabemos dosar. Que importa?


"Bebe todinho, gute gute"


Malhado repousa no sofá. Está velho. Todos estamos. Malhado é meu gato, tem quase 10 anos. Quando era jovem, vivia pulando, caçando insetos, saía à noite para coitos furtivos, miava bastante. Hoje ele só dorme e ronrona nos meus tornozelos quando está com fome. Está muito gordo, essa vida sedentária de apartamento não nos faz bem.


"Delícia... isso... safada"


Vou até o térreo, abro minha caixa postal e retiro alguns envelopes de lá. O pacote havia chegado. A máquina das memórias. Esta geringonça chinesa prometia criar um holograma realista das memórias humanas esquecidas. Muita coisa fica guardada em nosso cérebro, mas nós não conseguimos acessar de forma consciente e voluntária. Às vezes, elas vêm em sonhos, mas quase sempre são resquícios abstratos e que são esquecidas assim que acordamos.


O processo era simples: bastava conectar alguns eletrodos na caixa craniana, em pontos específicos, colocar o cabo USB no computador, acessar um programa previamente instalado, ligar o projetor e pesquisar datas disponíveis. O programa prometia acessar memórias deletadas também. Isto que me dava medo. Se foram deletadas por mim, o que aconteceria se eu as trouxesse de volta?


Eu estava realmente ansioso. Conectei os cabos, abri a interface do programa e vi as datas disponíveis. Era uma lista enorme de datas. Milhares. Cliquei em uma aleatória, de 10 anos atrás. O objeto então emitiu um jogo de luz e começou a desenhar as imagens na minha frente, em três dimensões.


Era uma cena que eu preferia não ter visto. Foi quando soube da morte do meu filho num acidente de carro. Nela, eu minha esposa estamos desesperados, gritando, implorando a Deus para que não o levasse, o pobre menino, meu caçula. Desligo o equipamento.


Que diabo. Tem que ter alguma coisa boa, eu não vivi só momentos tristes. Novamente, religuei o projetor holográfico e coloquei numa data mais longínqua: 48 anos atrás.


Na cena, eu estou olhando pro telhado. As mãos pequenas resvalam na antevisão, balouço para os lados, ergo as perninhas, minha mãe vem até mim e me põe para mamar. Ela sorri pra mim, me faz carinho, me abraça, depois me passa para minha irmã mais velha, a Lúcia. Lúcia está jovem, não tem mais que 12 anos, cabelos negros cacheados, olhos vivos, sorriso faltando um dente. Minha irmã cuidou muito bem de mim, isso fez eu sentir por ela um amor que até então eu havia esquecido de sentir.


Mudo a data. 21 anos. Meu irmão revela a meu pai que é gay. Em seguida ele é surrado na cena. Meu pai desfere socos na cabeça dele, minha mãe intervém, ele o manda embora de casa. Está possesso de um ódio que não é explicável. Eu não tinha esquecido desta cena. Havia perdido o rancor por meu pai, mas revendo essas agressões voltei a sentir ódio dele, e pena. Morreu sozinho, num asilo, por conta de um câncer de pulmão. Nunca deixei de enviar a quantia mensal para mantê-lo com dignidade, porém não tinha cabeça para ir visitá-lo pessoalmente. Depois que eu saí de casa, ele nunca mais quis saber de mim. Sempre ia visitar minha mãe quando ele não estava.


Acho que bastou. Eu não podia continuar. Revisitar aquelas memórias, vagas, já em muitos detalhes apagadas, me sobrecarregou emocionalmente. Resolvi, todavia, acessar as memórias de hoje, só por curiosidade. Certamente eu veria o sol, Malhado dormindo, veria descendo com o lixo... mas qual foi minha surpresa, ao ver Giulia na sala de estar comigo, tomando café, me contando dos amores e da faculdade... Onde você está, querida Giulia?

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