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Foto do escritorA coruja

crônica do espólio


Plantas sarcófagas e carnívoras atrapalham-se, um lugar ao sol e um tempo na sombra.

Catatau, Paulo Leminski


A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.

O Castelo, Franz Kafka


Nogueira coadunava e era pressionado a coadunar. A pressão vinha de cima, pela posse dos meios de produção, ou da inteligência superior, ou do conhecimento técnico da burocracia que interessa a poucos. Os poucos burocratas que, conhecendo a lei e a conjugação de todos os verbos, a adjetivação de todos os substantivos, as concordâncias e a sintaxe, exerciam sobre os subordinados um poder intransponível, herdado sobretudo da escolha de uma ética duvidosa. De gabinete.


Nogueira pressionava. Ou melhor, coadunava. E dizia, faça isso ou aquilo, entregue os papéis, refaça a licitação, coordene os favores numa lista de operações estruturadas, promova reuniões e jantares, esqueça a República e etc. Segundo ele, tudo isso era normal, era nada mais que a fisiologia do sistema. Uma lei própria, que foge ao descalabro popular, mas que sustenta um aparelhamento digno de uma manifestação neoplásica. Silenciosa e eficaz.


Na periferia, as pessoas tinham fome. Muitos jovens, movidos por um ideal de consumo que ia além de seu poder aquisitivo (o único poder que o pobre tem é esse: o de compra!) acabavam por entregar-se ao submundo do tráfico e da violência. As casas, caindo aos pedaços, abrigavam gente muito mais do que deveriam abrigar. Nas camas repousavam colchões de espuma tóxica e pesteados de ácaros, e nos colchões repousavam os corpos cansados de gente sem esperança no futuro, por que ele nunca chegava. Cansaram de esperar, e viviam aquela vida pacata, monótona, ao ponto que os únicos divertimentos eram visitar parentes e frequentar a igreja aos domingos. Os que bebiam faziam dos bares seu templo.


Nogueira compreendia tudo isso. Mas ele não queria saber. Depois de ter construído uma mansão com piscina numa área um tanto quanto afastada da cidade, e de ter colocado os filhos na universidade, o que queria agora era manter o patrimônio e ampliá-lo na diversificação dos negócios. Para isso me delegava funções como fazer registro de posse em cartório, organizar inventário de posses, mediar reunião com empresários e realizar operações bancárias de cunho duvidoso. Homem sério e religioso, diga-se. Defensor da moral e dos bons costumes.


Sim, eu falava do povo. Aí veio o período eleitoral novamente, é óbvio. Trata-se do ritual quaternário, mas a máquina passa a canalizar as energias ainda faltando um ano, por que vence quem se organiza com mais antecedência. Os adversários, evidentemente, também querem estabelecer império. É por isso que tudo tende a uma complexidade inimaginável. É a complexidade da simplicidade. Fecham ruas, promovem generalizada compra de votos e busca de apoio político em troca de cargos, ameaçam, corrompem, difamam e destroem documentos e reputações. Nogueira era especialista em tudo isso, por isso era um homem que movia as peças. Exímio enxadrista.


Os comícios amontoavam gente aos milhares. Os pobres, os operários e os comensais percorriam o trecho a pé, gritando, levantando bandeiras e insultando adversários. No assoalho do trio, os articulados e articuladores, conhecidos mediadores, laranjas e mercenários. A massa seguia, uivante, ao som imperativo do locutor mordaz. Enquanto isso, a elite - dona do poder financeiro e conhecedora das artimanhas do poder - se esgueirava por reuniões secretas onde discutiam, entre drinks de uísque 12 anos, os rumos da campanha. Quando o candidato falava, todavia, ele trazia esperança. De fato, não se esperaria menos de um povo tão sofrido. A escravidão moderna não reside no grilhão metálico e no chicote, mas no tungamento da autonomia intelectual e pobreza induzida que se prolongam por inúmeras gerações que então compõem a romaria política interiorana. Ganha a corrida quem melhor se organiza.


Não se falava de educação emancipadora, emprego e cultura. A classe média insensível ao sofrimento dos mais pobres reproduzia o discurso de ódio, batia panela do alto de seus apartamentos e bradava pelo nome de um tal “...” donde se deduzia que claramente se perdera qualquer noção de respeitabilidade pela condição humana.

Eu só queria ouvir bossa nova, tomar um vinho francês e ter uma namorada interessante, por isso me dediquei àquelas tarefas que ora questiono. Se consegui tudo isso ou não, creio ser desnecessário comentar. Mas o candidato se (re)elegeu, e por isso continua me dando ordens. Não posso abdicar desse conforto, caro leitor. A vida é uma selva, há caças e caçadores, mortos e matadores, gênios e mentecaptos, industriais e operários, patrões e paus mandados. E há os técnicos burocratas, como eu.

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