Cuidado, caro leitor, esta breve história não é para ingênuos ou sóbrios. Se pertencer a uma dessas classes, a recomendação é abandoná-la desde já.
Dr. Alfredo Mangabeira tinha me pedido um favor.
“Leve essa televisão lá no posto rodoviário, diga aos rapazes que foi um pequeno presente do velho amigo Alfredo” disse ele, voz empostada, quase gutural, certeza de coronel. “Tubo de raios catódicos, a mais nova invenção da física.” Era um homem culto.
“Pode deixar, doutor. Já está entregue.”
Havia, no entanto, um pequeno problema. O carro só tava o chassi. Documento, não tinha. Peguei o filho da puta na mão de um cara de Feira de Santana num rolo altamente suspeito, sem procedência, tanto do veículo quanto da figura com quem negociei, sujeito malino. Com que cara eu ia chegar num Posto da Polícia Rodoviária dirigindo uma carroça daquelas? Mas eu tinha que fazer a entrega, e só tinha a baranga pra isso – a baranga era justamente um Ford Del Rey 1984 movido a GLP, dentro do qual eu já tinha tido os lances mais loucos de minha vida. Os bancos, já meio furados por traças, exalavam um fedor de caspa e cinza de cigarro, mas isto era dos males o menor.
Leitor amigo (que é diferente de amigo leitor), entenda de uma vez: favor de Dr. Alfredo não se nega. O homem sempre me ajudou, muito além do que meu pai alcoólatra pôde me ajudar. Aliás, o que meu pai fez foi reduzir meus dias de vida, que Deus o tenha. Ou o diabo, vai saber pra onde o velho foi. Mas dizia eu: negar favor de Dr. Alfredo, nem pensar. Quando o homem assumiu a vice-prefeitura daqui da cidade, fez de mim subprocurador de assuntos institucionais II, mesmo eu não tendo ensino superior. Isso é que é ser pai! Tudo bem que na campanha eu botei uns cabos eleitorais da oposição pra correr debaixo de bala, e ajudei no cercamento dos povoados pra compra de votos, melhor dizendo, ajuda de custo para pobres, ignorantes e esfomeados, e isso Dr. Alfredo soube reconhecer. Não sou estudado, mas tenho minha expertise! Aí é que eu fui fazer a entrega da TV.
Antes, é claro, eu passei na casa de Leonel. O sujeito tava me devendo cem reais desde o ano passado, mas toda vez que eu cobrava, me inventava uma desculpa. Maior escroto.
“E aí, Leona, já tem a diligência?”
“Tem metade”
“Passa pra cá”
Cinquenta tava bom. Era melhor do que nada.
Na entrada do Posto, o policial mandou encostar o carro. Desnecessário, pois era justamente isso que eu ia fazer.
“Documento seu e do carro, cidadão” ordenou o praça2.
“Bom dia, seo polícia. Espere um minuto, na verdade eu vim trazer um presente pra os amigos da polícia rodoviária, e quem mandou foi o Dr. Alfredo Mangabeira”
O agente olhou para ambos os lados da estrada e aproximou-se da janela do Del Rey.
“Tá querendo me sacanear, engraçadinho?” Ele pôs a mão no coldre.
“De jeito nenhum, autoridade. Sou um homem de respeito”
“E que presente é este?”
“Uma televisão novinha, dessas de cores, pra os amigos verem o futebol e o jornal. A era do rádio acabou”
“Pode despachar. Se não condisser com a descrição, levo você pro xadrez e o automóvel pro parque”
Engoli a seco, camaradas. Prender a baranga, já pensou? Ia desmantelar minha vida. Mas não pestanejei: desci do carro, ligeiro, retirei o mimo e o instalei para os bravos guerreiros das estradas torpes deste Brasil. Ao fim, um policial, que parecia ser o subtenente, falou comigo.
“Vai um cafezinho, major?”
Recusei. De cafezinho em cafezinho, eu ia virar cafetão de polícia.
Na saída, perguntei se o policial ainda considerava importante averiguar a documentação do carro e do ilustre narrador que vos fala. Ele fez que não com a cabeça e abanou a mão pra frente, me mandando seguir viagem. Entrei na baranga, botei Raul Seixas no toca fitas e deslanchei na BR (viva, viva, viva a sociedade alternativa!). Tinha uns negócios pra resolver em Feira, que diferia de mim em mais de 30 léguas. No meio do caminho, apontei a nota que Leonel me dera contra a luz do sol e notei que ela não possuía marca d’água.
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