Já está claro para todos, ou pelo menos para os que não insistiram na cegueira voluntária, no anacronismo ou na ignorância abissal, que o governo de Jair Bolsonaro não está preocupado com nenhum problema que afete a vida dos brasileiros mais pobres. É o Estado liberal, ou melhor, ultraliberal, elevado à enésima potência, onde as preocupações sociais e o sofrimento do povo são completamente ignorados.
O mote sempre foi esse: o famoso Estado mínimo. Ora, ele está sendo comprimido de tal sorte, que não demora, e ele não será nem mínimo mais. Será uma massa disforme de Estado nulo. Ausência de Estado. Constituição rasgada.
Talvez a coisa mais próxima disso seja a anarquia, tal como uma tese de Mikhail Bakunin, um dos mais renomados teóricos anarquistas, que rejeitava todas as formas de governo. Mas mesmo Bakunin, ferrenho anarquista, tinha ideias concretas, projetos, e preocupação com as condições de vida do povo. É como ele fala em Catecismo Revolucionário, aludindo à sua proposta socialista, a qual ensejaria
“(...)modos igualitários de subsistência, fomento, educação e oportunidade para cada criança, menino ou menina, até a maturidade, e recursos e infraestrutura análoga na idade adulta para dar forma ao seu próprio bem estar através do próprio trabalho.”
Assim, no Brasil atual, parece haver um anarquismo às avessas, sem conteúdo, e um sepulcral silêncio ou ausência de propostas para debelar a crise, ou melhor, a montanha de crises, e a educação está inserida nesse processo.
Sem diretrizes para o ensino remoto e a volta às aulas, o governo federal fechou os olhos para o problema, que já era crítico, tal como fez com a saúde. Milhões de crianças ficaram em casa sem atividades escolares e os mais pobres perderam até 50 dias de aula, uma situação que tende a se agravar. Isto foi demonstrado pelo boletim número 22 da Rede de Pesquisa Solidária (RPS), um grupo de pesquisadores que desenvolve trabalhos de caráter multidisciplinar, multi-institucional e está em contato com centros de excelência no exterior, como a Universidade de Oxford (Reino Unido) e a Texas A&M University (EUA), visando oferecer uma luz aos governos no direcionamento de políticas públicas para o enfrentamento à pandemia e outros problemas que afetam a sociedade.
A falta de coordenação do Ministério da Educação com estados e municípios precipitou um apagão geral na educação que fez 8,3 milhões de crianças entre 6 e 14 anos ficarem sem qualquer atividade escolar. As conclusões do estudo da RPS são chocantes e evidenciam o abismo da desigualdade social no Brasil, mostrando, por exemplo, que 30% dos estudantes mais pobres ficaram sem atividades escolares em julho, e entre os mais ricos, foram menos de 4%.
Ainda, a desigualdade da proficiência em português, entre estudantes de classes baixas e altas, pode dobrar no período de pandemia. Para matemática, o crescimento da desigualdade pode ser de 70% entre os mais ricos e os mais pobres.
Assim, é preciso que o papel constitucional do poder público seja retomado concretamente, ou, para além do estado de anarquia, pode se precipitar um estado de apartheid social, pois essas desigualdades tendem a se agravar ao longo do tempo, como reflexo da inação do agora. A criança sem estudar agora, terá agravadas as já imensas dificuldades relacionadas ao acesso às universidades e ao mercado de trabalho.
Este papel, portanto, reside no esforço conjunto pela mobilização entre os setores da sociedade e dos governos na direção de sanar essas desigualdades, por exemplo no acesso à internet e a ferramentas digitais de ensino, com apoio não só da secretaria de educação, mas também CRAS, secretarias de saúde e assistência social, junto às famílias, como destacou Ian Prates, pesquisador da RPS em entrevista ao Jornal da USP.
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